Simulação de Julgamento

João Recruta, sargento do exército, foi punido, na sequência de procedimento disciplinar, com a pena de 5 dias de detenção, por ter participado numa manifestação contra as políticas do Governo de alteração do sistema de saúde e de segurança social dos militares. Inconformado com a decisão, João Recruta apresentou pedido de impugnação da pena que lhe foi aplicada, assim como requer a respectiva suspensão, junto dos Tribunais Administrativos, alegando que não estava a «participar numa manifestação ilegal, mas apenas a passear num local público» e que «por ser militar não deixa de ser também cidadão, não estando por isso impedido de discordar de decisões dos "políticos" atentatórias da "condição militar"». Por seu lado, José Rígido, autor da punição contestada, contrapõe que «os Tribunais Administrativos não possuem competência para se imiscuir em questões do estrito foro militar, e que as decisões das legítimas hierárquicas militares, nomeadamente em matéria disciplinar, não são susceptíveis de controlo jurisdicional, sob pena de criação de situações inadmissíveis de sublevação e de insurreição». Quid Iuris?

domingo, maio 13, 2007

Os militares e o direito de manifestação

Hoje, no fim de um curso de Direito, não há já lugar para dúvidas: a Constituição Portuguesa de 1976 foi extremamente generosa em matéria de elenco de direitos fundamentais, permitindo-nos, até, falar (pedindo emprestada uma expressão de Vital Moreira e Gomes Canotilho (*1)) de um «Estado de Direitos Fundamentais».

Ainda assim, desta conclusão não é possível retirar uma ideia de ausência de limites ou da possibilidade de serem introduzidas restrições ao exercício destes direitos. É desta premissa que cumpre fazer referência ao disposto no artigo 270.º da nossa Constituição, introduzido aquando da revisão constitucional de 1982, que, nas palavras de Paulo Otero (*2), «habilita a introdução legal de restrições ao exercício de certos direitos por parte dos militares».

A solução portuguesa nesta matéria não se mostra isolada em termos internacionais – tendo sido igualmente adoptada na Alemanha, no Brasil, Dinamarca, Espanha, etc –correspondendo a uma «longa tradição constitucional portuguesa». (*3)

O fundamento desta exclusão assentará nas exigências próprias da função militar, designadamente a natureza rigorosamente apartidária das Forças Armadas (cfr. Artigo 275.º n.º4 CRP), o seu dever constitucional de obediência aos órgãos de soberania (art. 275.º n.º3) – designadamente a sua subordinação ao poder de direcção do Governo (art. 199.º d)).

Recordamos, contudo, que estas restrições devem respeitar os princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, impostos pelos artigos 18.º e 19.º da nossa lei fundamental.


Na esquematização que se segue, acompanharemos o raciocínio delineado por Paulo Otero na obra já referida.

O artigo 270.º CRP confere ao legislador um verdadeiro poder discricionário. De facto, não resultando directamente da Constituição as restrições ao exercício de direitos por parte dos militares, o legislador poderá, «mediante um juízo político de conveniência, totalmente insusceptível na sua margem de liberdade decisória de qualquer controlo judicial», fixar restrições ao exercício de certos direitos fundamentais.

Por outro lado, não é menos verdade, que as restrições obedecerão, sob pena de inconstitucionalidade, a dois tipos de limites, estabelecidas no próprio preceito:


- As restrições devem ser estabelecidas na estrita medida das exigências próprias das respectivas funções; e

- As restrições obedecem a um princípio da taxatividade, só podendo incidir sobre o exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e capacidade eleitoral passiva.


Destacamos, ainda, que a lei definidora destas restrições se configura como uma lei de valor reforçado (*4), com as devidas consequências que todos dominamos do Direito Constitucional.


É neste cenário que deve ser analisada a restrição ao exercício do direito de manifestação por militares, consagrada hoje no artigo 30.º-C da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, segundo resulta da Lei Orgânica n.º 4/2001, de 30 de Agosto.(*5)

O artigo 31.º-C, por sua vez, introduziu dois tipos de condições ou requisitos de validade para a participação(*6) .dos militares numa manifestação:

- condições referentes à manifestação: (i) necessidade da regularidade jurídica da sua convocação; (ii) não assumir natureza político-partidária ou (iii) sindical;
- condições referentes à própria participação dos militares: (i) encontrarem-se desarmados e trajarem civilmente (ii) não ostentar qualquer símbolo nacional ou das Forças Armadas; (iii) e que participação não envolva risco para a coesão e a disciplina das Forças Armadas.

Não nos iremos alongar nestas condições uma vez que elas serão, supomos nós, batalhadas ao longo da simulação da audiência de julgamento. Ainda assim podemos, desde logo, extrair algumas conclusões, em jeito, também, de pergunta.

O exercício do direito de participação dos militares numa manifestação expressa a condição de cidadão e, não, a qualidade de militar.

Mas será que podemos dizer que, apesar de se traduzir num direito do cidadão, um militar nunca deixa de ser um militar - e que, por esse motivo, o desrespeito por aquelas condições é, por um lado, passível de originar sancionamento disciplinar militar e, por outro, veda, ao cidadão (militar é certo) o acesso aos tribunais administrativos?

E a determinação do preenchimento, ou não, das condições enunciadas, sem dúvida vagas e indeterminadas (por exemplo, a última das condições) pelas estruturas dirigentes das forças armadas (ou, em última análise, o próprio Governo) não será uma solução estranha? Ainda para mais se não couber recurso para os tribunais administrativos, sendo, assim, a sua decisão, definitiva?

O que dizer da "bondade" legislativa desta lei, que trata de um dos direitos mais fundamentais e expressivos de um Estado Democrático?


*1 - In «Fundamentos da Constituição», Coimbra 1991, p. 83.
*2 - Conferir «Os militares e o direito de manifestação», 2006.
*3 - Conferir Gomes Canotilho e Vital Moreira «Constituição da República Portuguesa Anotada», 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 950. Tradição esta, aliás, herdada da Constituição francesa de 1791 que rezava: «La force publique est essentiellment obéissante; nul corps arme ne peut délibérer».
*4 - Assim concordam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 950. Estes autores chamam a atenção para que «a Constituição criou um regime procedimental e material privilegiado para a restrição do exercício de direitos por militares, em termos comparativos com o regime geral de restrição dos direitos fundamentais dos restantes cidadãos: é mais difícil, exigente e complexo obter uma lei restritiva do exercício de direitos por militares do que uma qualquer lei restritiva de direitos dos restantes cidadãos».
*5 - Esta lei é considerada por Paulo Otero como mais pormenorizada, condicionante e restritiva do exercício de um direito fundamental do que aquela que foi inicialmente aprovada pela Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro.
*6 - Esta é, também, uma das novidades da nova Lei Orgânica face à primitiva redacção – aos militares é reconhecido o exercício de um direito de manifestação, excluindo-os do exercício de um poder de convocar manifestações.



terça-feira, maio 01, 2007

A legitimidade activa: o busílis da questão

No artigo 9º do CPTA, que se refere à legitimidade activa no contencioso administrativo, foi adoptada a técnica do legislador do Código de Processo Civil, nomeadamente nos artigos 26º e 26º-A, reunindo num único artigo as duas possibilidades delegitimidade directa - "a pertinência da relação jurídica administrativa para as acções de função objectiva (nº1) e a titularidade de um interesse difuso no que se refere à acção popular (nº2)"*. Comparativamente à lei processual civil, este artigo 9º é bastante menos amplo, uma vez que apenas identifica como parte legítima o sujeito da relação jurídica.

A velha discussão doutrinária sobre o critério da legitimidade activa é agora resolvido neste artigo do CPTA, determinando que esta é aferida pela relação jurídica controvertida "tal como é apresentada pelo autor".

Quando é definido como parte legítima o autor "que alegue ser parte na relação material controvertida", é evidenciado, claramente, pelo legislador, a intenção de construir todo o contencioso administrativo em torno da figura da relação jurídica, afastando qualquer construção assente numa restrição de direitos processuais, no seu relacionamento com a administração, alargando ao menos tempo a protecção de terceiros.




* Cfr. Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E OUTROS, artigo 9º
Vide também VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, págs. 233 ss.